sexta-feira, 6 de abril de 2012

O MISTÉRIO DO TRAIDOR

O trecho do lava-pés coloca-nos perante duas formas diversas de reação do homem a esse dom: Judas e Pedro. Imediatamente depois de ter acenado ao exemplo, Jesus começa a falar do caso de Judas. A esse propósito, João refere-nos que Jesus Se sentiu profundamente turvado e declarou: "Em verdade, em verdade vos digo: um de vós Me entregará" (13, 21)

Três vezes fala João da "perturbação", ou seja, da "comoção" de Jesus: junto do sepulcro de Lázaro (cf. 11, 33-38); no Domingo de Ramos, depois da palavra sobre o grão de trigo que morre, numa cena que lembra de perto a hora do monte das oliveiras (cf. 12, 24-27); e, por último, aqui. São momentos em que Jesus Se encontra com a majestade da morte e é tocado pelo poder das trevas; poder esse que é sua tarefa combater e vencer.

O anúncio da traição suscita compreensivelmente agitação e ao mesmo tempo curiosidade entre os discípulos. "Estava à mesa, ao lado de Jesus, um de Seus discípulos, aquele que Jesus amava. Simão Pedro faz-lhe então, um sinal e diz-lhe: 'Pergunta-Lhe quem é aquele de quem fala'. Ele, então, inclinando-se sobre o peito de Jesus, diz-lhe: 'Quem é, Senhor?'. Responde Jesus: É aquele a quem Eu der o pão que vou umedecer no molho" (13, 23-26)

Para a compreensão desse texto, é preciso, antes de qualquer coisa, ter em conta o fato de estar prescrito, para a ceia pascal, que se estivesse reclinado à mesa. Charles K. Barret explica assim o primeiro versículo agora citado: "Os participantes numa ceia estavam reclinados sobre a sua esquerda; o braço esquerdo servia para sustentar o corpo; o direito ficava livre para ser usado. Desse modo, o discípulo à direita de Jesus tinha a cabeça imediatamente diante de Jesus e, por conseguinte, podia-se dizer que estava reclinado junto do seu peito. Obviamente podia falar confidencialmente com Jesus, mas o seu lugar não era o de maior honra; este se situava à esquerda do chefe da casa. Seja como for, o lugar ocupado pelo discípulo amado era o lugar de um amigo intímo".

Tal como aparece transcrita aqui, a resposta de Jesus é totalmente clara. E, todavia, o evangelista anota que os discípulos não compreenderam a quem Ele Se referia. Por isso podemos supor que João, repensando no caso, tenha conferido à resposta uma evidência que então não tivera para os presentes. O versículo 18 coloca-nos na pista justa; aqui Jesus diz: "Mas é preciso que se cumpra a Escritura: 'Aquele que come o meu pão levantou contra Mim o seu calcanhar'" (cf. Sl 41, 10; Sl 55, 14). Este é o estilo característico de Jesus falar: com palavras da Escritura, alude ao seu destino, inserindo-se ao mesmo tempo na lógica de Deus, na lógica da história da salvação.

Mais tarde, essas palavras tornam-se completamente claras; fica claro que a Escritura descreve verdadeiramente o seu caminho, mas naquela hora permanece o enigma. Ao princípio, apenas se deduz que aquele que há de atraiçoar Jesus é um dos convivas; torna-se evidente que o Senhor tem de sofrer até o fim e, mesmo nos detalhes, o destino de sofrimento do justo, um destino que se manifesta de variados modos, sobretudo nos Salmos. Jesus tem de experimentar a incompreensão, a infidelidade até no âmbito do círculo mais íntimo dos amigos e assim "cumprir a Escritura". Ele revela-Se como o verdadeiro sujeito dos Salmos, como o Davi de quem provêm e por meio de quem adquirem sentido.

Quando João escolheu, em lugar do termo habitualmente usado na Bíblia grega para dizer "comer", a palavra trõgein usada por Jesus, no seu grande discurso sobre o pão, para indicar o "comer" o seu Corpo e Sangue, isto é, receber o sacramento eucarístico (cf. Jo 6, 54-58), acrescentou uma nova dimensão à palavra do Salmo retomada por Jesus como profecia sobre o seu próprio caminho. Assim, a palavra do Salmo lança, de antemão, a sua sombra sobre a Igreja que celebra a Eucaristia no tempo do evangelista como em todos os tempos: com a traição de Judas, não terminou o sofrimento pela deslealdade. "Até o amigo íntimo em quem eu confiava, que partilhava do meu pão, até esse se levantou contra mim" (Sl 41, 10). A ruptura da amizade chega até mesmo à comunidade sacramental da Igreja, onde sempre de novo há pessoas que partilham "o Seu pão" e O atraiçoam.

João não nos oferece qualquer interpretação psicológica do comportamento de Judas; o único ponto de referimento que nos dá é a alusão ao fato de que Judas, como tesoureiro do grupo dos discípulos, teria roubado o seu dinheiro (cf. 12, 6). No contexto que nos interessa, o evangelista limita-se laconicamente a dizer: "Depois do pão, entrou nele Satanás" (13, 27)

Para João, aquilo que aconteceu a Judas já não é explicável psicologicamente. Acabou sob o domínio de outrem: quem rompe a amizade com Jesus, quem se recusa a carregar o seu "jugo suave", não chega a liberdade, não se torna livre, pelo contrário, torna-se escravo de outras potências; ou mesmo: o fato de atraiçoar essa amizade já deriva da intervenção de outro poder, ao qual se abriu.

Entretanto, a luz, vinda de Jesus, que caíra na alma de Judas, não se tinha apagado totalmente. Há um primeiro passo rumo à conversão: "Pequei" - diz ele aos seus mandantes. Procura salvar Jesus, devolvendo o dinheiro. Tudo o que de grande e puro recebera de Jesus permanecia gravado na sua alma; não podia esquecê-lo.

A segunda tragédia dele, depois daquela da traição, é já não conseguir acreditar num perdão. O seu arrependimento torna-se desespero. Agora só se vê a si mesmo e às suas trevas, já não vê a luz de Jesus - aquela luz que pode iluminar e vencer as próprias trevas. Desse modo faz-nos ver a forma errada do arrependimento que já não consegue esperar, mas agora só vê a própria escuridão, é destrutivo, não é um verdadeiro arrependimento a certeza da esperança - uma certeza que nasce da fé no poder maior da Luz que Se fez carne em Jesus.

João conclui dramaticamente o trecho sobre Judas com estas palavras: "Tomando, então, o pedaço de pão, Judas saiu imediatamente. Era noite" (13, 30). Judas vai para fora, num sentido mais profundo: entra na noite; vai-se embora da luz para a escuridão. O "poder das trevas" agarrou-o. (cf. Jo 3, 19; Lc 22, 53).

Bento XVI - Jesus de Nazaré, p. 70 a 72

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