terça-feira, 26 de março de 2013


O lava-pés pelo Papa Emérito Bento XVI

Depois dos discursos com o ensinamento de Jesus na sequência da sua entrada em Jerusalém, os evangelhos sinóticos retomam o fio da narração, com uma datação exata, que conduz à Última Ceia.

 Na abertura do capítulo 14, Marcos começa escrevendo: “A Páscoa e os Ázimos seriam dois dias depois” (14,1); em seguida fala da unção em Betânia e também da traição de Judas, e continua: “No primeiro dia dos Ázimos, em que se imolava o cordeiro pascal, os seus discípulos perguntaram a Jesus: ‘Onde queres que façamos os preparativos para comeres a Páscoa”’ (14, 12).

João, por sua vez, diz simplesmente: “Antes da festa da Páscoa, (...) durante a Ceia...” (13, 1-2). A ceia, de que fala João, ocorre “antes da Páscoa”, enquanto os sinóticos apresentam a Última Ceia como Ceia Pascal, partindo assim, aparentemente, duma data que diverge de um dia relativamente à de João.

Devemos retornar às questões, objeto de grande discussão, que dizem respeito a essas cronologias diferentes e ao seu significado teológico, quando refletirmos sobre a Última Ceia de Jesus e sobre a instituição da Eucaristia.

A hora de Jesus

“[...] Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua ora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os Seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1). Com a a Última Ceia, chegou a Hora de Jesus, para a qual se orientava a sua atividade desde o princípio (cf. 2, 4). O essencial dessa hora é delineado por João com duas palavras fundamentais: é a hora da “passagem”; é a hora do amor (ágape) “até o fim”.

As duas expressões clarificam-se reciprocamente, sendo inseparáveis uma da outra. O amor é precisamente o processo da passagem, da transformação, da saída dos limites da condição humana votada à morte, na qual todos estamos separados uns dos outros e, no fundo, impenetráveis uns aos outros – numa alteridade que não podemos ultrapassar: É o amor até o fim que realiza a “metábasis” aparentemente impossível: sair das barreiras da individualidade fechada – eis o que é o ágape; a irrupção na esfera divina.

A hora de Jesus é a hora da grande “passagem mais além”, da transformação, e esta metamorfose do ser realiza-se por meio do ágape, É um ágape “até o fim” – expressão essa com que NJoão, neste ponto, remete de antemão para a última palavra do crucificado: “Está consumado – tetélestai”. Esse fim, essa totalidade da doação, da metamorfose de todo o ser é precisamente o dar-se a si mesmo até a morte.
[...]

Ouçamos agora como continua o evangelista: Jesus “levanta-Se da mesa, depõe o manto e, tomando uma toalha, cinge-se com ela. Depois, coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha que estava cingido” (Jo 13, 4-5). Jesus presta aos seus discípulos o serviço do escravo, “humilha-Se a Si mesmo” (Fl 2, 7).

Aquilo que diz a Carta aos Filipenses, no seu admirável hino cristológico – isto é, que, num gesto contrário ao de Adão, que tentara com as próprias forças apoderar-se do divino, Cristo desceu da sua divindade tornando-Se homem, “assumiu a condição de servo” e fez-Se obediente até a morte de cruz (cf. 2, 7-8) – tudo isso ficou visível aqui num único gesto. Com um ato simbólico, Jesus ilustra o conjunto do seu serviço salvífico. Despoja-Se do seu esplendor divino, ajoelha-Se por assim dizer diante de nós, lava e enxuga os nossos pés sujos, para nos tornar capazes de participar no banquete nupcial de Deus.

[...] O gesto do lava-pés exprime isto mesmo: é o amor serviçal de Jesus que nos tira fora da nossa soberba e nos torna capazes de Deus, nos torna “puros”.

(Jesus de Nazaré – Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição, Planeta, p. 60-62)